segunda-feira, 6 de junho de 2011

"Retrato", de Manuel Machado

Este é o meu rosto e esta é a minha alma. Lede:
São uns olhos de tédio e uma boca de sede...
O resto... Nada... Vida... Coisas... Já se sabe...
Tanta estroinice, paixonetas... Nada grave.
Um pouco de loucura, um grão de poesia,
uma gota do vinho da melancolia...
Vícios? Todos. Nenhum... Nunca joguei, - não minto:
não gozo quanto ganho nem o perdido sinto.
Bebo, pra não negar minha terra, Sevilha,
meia dúzia de copos, mas só de manzanilla.
As mulheres..., sem ser um D. João - sou sincero! -,
tenho uma que me quer e outra a quem eu quero.

Acuso-me de não amar senão só vagamente
uma porção de coisas que encantam toda a gente...
A agilidade, o tino, a graça e a destreza,
mais que a vontade, a força e a grandeza...
Minha elegância é buscada, rebuscada. Asseguro
que antes o chic e o toureiro que o helénico e puro.
Um lampejo de sol e um riso em seu momento
prefiro à lua com seu langor nevoento.
Meio cigano e meio parisino - diz o vulgo -,
com Montmartre e com a Macarena comungo...
E, antes que um tal poeta, meu desejo primeiro
era ter sido um bom bandarilheiro.

É tarde... Ando à pressa. E o meu riso rasgado
é alegre, e não nego que estou muito apressado.

(in Alguns Cantares; trad. José Bento)

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