sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Cantiga de amigo, de D. Dinis

Quem trist'hoj'é meu amigo,
amiga, no seu coraçom,
ca nom pôde falar migo
nem veer-m', e faz gram razom
meu amigo de trist'andar,
por m'el nom ver e lh'eu nembrar.

Trist'anda, se Deus mi valha,
ca nom me viu, e dereit'é;
e por esto faz sem falha
mui gram razom, per bõa fé,
meu amigo de trist'andar,
por m'el nom ver e lh'eu nembrar.

D'andar triste faz guisado,
ca o nom vi, nem viu el mi,
nem ar oíu meu mandado;
e por em faz gram dereit'i
meu amigo de trist'andar,
por m'el nom ver e lh'eu nembrar.

Mais, Deus, como pode durar,
que já nom morreu com pesar?

v.1 que triste está hoje; v. 4 "e faz gram razom": e tem razão; v. 6 "nembrar": lembrar; v. 8 "e dereit'é": e é justo; vv. 13-16 é próprio que ande triste / porque não o vi, nem ele me viu a mim / nem além disso ouviu o meu recado; / e por isso procede muito bem.

(in Cancioneiro; ed. Teorema, 1997, notas de Núno Júdice)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"Vã procura", de Péricles Prade

Em vão procurei a Tabacaria
do Esteves sem metafísica.
Queria, como Álvaro de Campos, dizer-lhe adeus.
Por toda a parte procurei
a Tabacaria & seu dono
olhando tabuletas diurnas e noturnas
em várias direções.
Mas nas tabacarias de hoje
(nas que entrei ou vi de relance)
não há Esteves, ainda que defronte
haja metafísica de todo gênero, sor-
risos, máscaras mouras, jogadores
de dominó, trovadores convencidos, fumadores,
marqueses, mendigos, lagartos decadentes,
línguas, temores, Amálias,
pombas, mistérios e contradições.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

domingo, 23 de dezembro de 2012

"Livro", de Fernando Guimarães

É diante de ti que se encontra; está aberto
sobre a mesa. Há muito que foi ali deixado para ficar
mais perto de nós. Sabes que nele pode existir
o vento, a cor indecisa das nuvens, o voo

das aves, aquilo por que esperas. À sua volta
vês a luz que tinhas acendido: há-de ser límpido
o sentido que chega em cada um das páginas
que leste. Sem que o possas saber, talvez haja

alguém cuja proximidade se torna mais tranquila
ao iniciar o seu caminho para que as palavras
se unam umas às outras e seja maior

o sentido que têm. Isto faz com que as compreendas
melhor. Depois ergues os olhos e um novo livro
principia.

(in Relâmpago. Revista de Poesia, 29-30; 2012)

(Uma recomendação)

(Este livro, comprado há já algum tempo e renovadamente adiado até ontem (ou, mais precisamente, até às duas da manhã de hoje), tem constituído uma muito agradável surpresa. Ler poesia galaico-portuguesa acarreta algumas dificuldades, é certo; o meu receio de ficar além da compreensão - talvez herdado dos tempos em que tive de enfrentar tal poesia nas certeiras da escola básica e secundária - fez-me preterir este livro em função de outro. Porém, chego agora à conclusão que o receio era injustificado. Esta edição da poesia de D. Dinis, da responsabilidade de Nuno Júdice, procura colocá-la "ao alcance de um público vasto", através de notas que facilitam a interpretação e de um glossário com alguns termos eventualmente mais obscuros. É, portanto, a sugestão que deixo aos leitores do poemapossivel).

sábado, 22 de dezembro de 2012

"Atira para o mar", de Renata Pallottini

Atira para o mar as tuas coisas
abandona os teus pais
muda de nome

esquece a pátria
parte sem bagagem
fica mudo e ensurdece
abre os teus olhos.

Se o teu amor não vale tudo isso
então fica onde estás
gelado e quieto.

O amor só sabe ir de mãos vazias
e só vale se for
o único projeto.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"Gaiola de Vidro", de Jorge de Sena

(Nas últimas páginas desse romance que Jorge de Sena não reviu nem concluiu, mas que, ainda assim, é uma obra com bastante interesse)

Como paredes através das quais
o mundo vemos pelo ser dos outros,
quem vamos conhecendo nos rodeia,
multiplicando as faces da gaiola
de que se tece em volta a nossa vida.

No espaço dentro (mas que não depende
do número de faces ou distância entre elas)
nós somos quem nós somos: só distintos
de cada um dos outros, para quem
apenas somos uma face em muitas,
pelo que em nós se torna, além do espaço
uma visão de espelhos transparentes.

Mas o que nos distingue não existe.

(in Sinais de Fogo)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

"A idade", de Carlos Nejar

Falou e disse um pássaro,
dois sóis, uma pequena estrela.
Falou para que calássemos
e disse amor, penúria, brevidade.
E disse disse disse
a idade da eternidade.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

"Celestial", de Álvaro Alves de Faria

Quando tentei ser santo,
queria apenas ser um santo
sem compromisso
de fazer milagres.

Seria uma espécie de santo avulso,
desses que permanecem
desconhecidos no céu
e que só vêem Deus
de muito longe,
sem direito a carro oficial.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

"A Ricardo Reis, no Mar da Galiléia", de Alberto da Costa e Silva

Só dizem os deuses o que logo esquecem,
mas o jogo do céu é amplo e reto,
e cada lance é um coração aberto:

nele não dorme o que se fez desperto,
o eterno é agora e em si mesmo morre,
nunca houve rumo e todo sempre é incerto.

- Não creio, e rezo.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Soneto XXXIII, dos "35 Sonnets", de Fernando Pessoa

He that goes back does, since he goes, advance,
Though he doth not advance who goeth back,
And he that seeks, though he on nothing chance,
May still by words be said to find a lack.
This paradox of having, that is nought
In the world's meaning of the things it screens,
Is yet true of the substance of pure thought
And there means something by the nought it means.
For thinking nought does on nought being confer,
As giving not is acting not to give,
And, to the same unbribed true thought, to err
Is to find truth, though by its negative.
So why call this world false, if false to be
Be to be aught, and being aught Being to be?

* * *

Quem para trás vai, só por isso avança,
Inda que não avance recuando,
E quem procura, o nada encontrando,
Dele se dirá que o vazio alcança.

Este nada é paradoxo do ter
No sentido em que o mundo o vem velar,
É a vera essência do puro pensar
E algo diz pelo nada dizer.

Se o não dar é o acto de não o dar,
E pensar o nada é reconhecê-lo,
Segundo o mesmo pensamento, errar

É descobrir verdade, não a tendo.
Porquê chamar falso o mundo se, por sê-lo,
É já algo do Ser, por isso sendo?

(in Poesia Inglesa, vol I; Assírio & Alvim, trad. Luísa Freire)

domingo, 4 de novembro de 2012

(Objetos [utópicos] de desejo)

(E além destes três exemplos - os Diários, de Al Berto, Nenhum caminho será longo. Para uma teologia da amizade, de José Tolentino Mendonça, e A Civilização do Espetáculo, de Mário Vargas Llosa -, ainda vimos por aí (e desejamos, infelizmente sem a possibilidade de os trazer para casa) a poesia reunida de Vasco Graça Moura (dois volumes), de Maria do Rosário Pedreira (com inéditos) e de João Luís Barreto Guimarães. Houvesse possibilidade, trataria de arranjar um bom lugar para os acolher e o tempo necessário para os desfrutar...)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

"Café do Molhe", de Manuel António Pina

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Dois versos de Fernando Echevarría

Que ler é umbral de entrarmos no esquecido
que o gesto lento de folhear acorda.

(versos do poema "Livro", in Obra Inacabada; ed. Afrontamento, 2006)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Poema de Nuno Moura

é de origem entronca e de pais separos
e teve mais de noventa mil pessoas delirias
no estádio das antas para o lançamento
do seu último livro de poesia.

seguiu em turné por paranhos bessa
e depois são luis pelo sul
tendo uma andança de três ponto um milhões
só em vendas estádias.

somando a viagem recitária
as exportações para o resto do mundo
e o residual fotocópio
totobola para cima de quinze ponto sete milhões
de livros.

só em receitas publicitárias com a telecele pêtê cêpê
renô náique sequipe e ibêéle
fala-se de valores na casa dos champálimôs.

portugal é um país de poetas ricos.

a poesia dá dinheiro a portugal.

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

sábado, 27 de outubro de 2012

"A ponte", de Octavio Paz

Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.

(in Antologia Poética; ed. Dom Quixote, 1998)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

"Do poema como contrato social", de José Tolentino Mendonça

Comércio bilingue, o poema precisa da troca,
sobretudo se inútil,
da espontaneidade de poucos, dessa ideia de passagem,
de derrocadas e do silêncio que lhes sucede,
precisa de descendências particularmente radicais
do relâmpago ou de um absurdo ainda maior
para se tornar próximo

O poema é conversa humana
palavra que recuperamos
ao abandonar

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"O mapa", de José Tolentino Mendonça

aprendido num salmo sufi

Para os teus discípulos não há heresia
nem ortodoxia
Todos podem contemplar sem véus
a verdade que vem de ti

Insista o herético na sua heresia
e o ortodoxo na sua ortodoxia

O teu fiel é mercador de perfumes
em busca da essência de rosas
do amor divino
eu deambulo

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

"Certeza", de Octavio Paz

Se é real a luz branca
desta lâmpada, real
a mão que escreve, são reais
os olhos que olham o escrito?

Duma palavra à outra
o que digo desvanece-se.
Sei que estou vivo
entre dois parênteses.

(in Antologia Poética; ed. Dom Quixote, 1998)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

"A ciência do amor", de José Tolentino Mendonça


O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam

Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam

(in Estação Central; ed. Assírio &; Alvim, 2012)

sábado, 20 de outubro de 2012

"Os justos", de José Tolentino Mendonça

Começam o dia louvando o imperfeito:
O tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho

Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado

Estão sentados à soleira dos espaços
trabalhados devagar pelo silêncio

Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

(Adeus, Manuel...)

Manuel António Pina (18/11/1943 - 19/10/2012)

TODAS AS PALAVRAS

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,

e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.
(Poema retirado do blogue da Assírio & Alvim)

"Isto é o meu corpo", de José Tolentino Mendonça

O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve

O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?

Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

"Arte de amar", de José Saramago

Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.

(in Os Poemas Possíveis; ed. Caminho)

domingo, 23 de setembro de 2012

"No silêncio dos olhos", de José Saramago

Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?

(in Os Poemas Possíveis; ed. Caminho)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Outro poema de Filipa Leal

Antes de vir para o Vale Formoso,
convidaste-me para almoçar.
Eu já tinha almoçado, mas era tanta a vontade
de te ver que lá fui contigo comer chocos
com tinta.

À mesa no Vale Formoso, e sem fome, às vezes
punha-me a pensar que poderia não ser amor,
mas era certamente alguma coisa séria
o que me fazia almoçar duas vezes
no mesmo dia.

(in Vale Formoso; ed. Deriva, 2012)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Poema de Filipa Leal

No Vale Formoso, vou fumando cigarros,
vou tomando cafés, vou fugindo das abelhas,
vou fazendo de conta que aprecio
a natureza.

No Vale Formoso, vou aprendendo o caminho
para o mercado, vou comprando fruta, vou pesando
o peixe.

No Vale Formoso, vou escrevendo versos,
consciente porém de que seria mais feliz conquistar-te
com uma caldeirada de raia
do que com o poema.

(in Vale Formoso; ed. Deriva, 2012)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Ainda dois poemas de Albano Martins

Nenhuma orquestra
estreou ainda a sinfonia
concertante das estrelas.

* * *

O chão que pisas agradece
que sejas leve, para que ele um dia
o seja também para ti.

(in Estão agora floridas as magnólias; ed. Afrontamento, 2012)

sábado, 8 de setembro de 2012

Poema de Albano Martins

Para voar,
o vento não precisa
de ter asas.

(in Estão agora floridas as magnólias; ed. Afrontamento, 2012)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

"Os noivos", de Octavio Paz


Deitados na erva
uma rapariga e um rapaz.
Comem laranjas, tocam beijos
como as ondas trocam suas espumas.

Deitados na praia
uma rapariga e um rapaz.
Comem limões, tocam beijos
como as nuvens trocam suas espumas.

Deitados sob a terra
uma rapariga e um rapaz.
Não dizem nada, não se beijam,
trocam silêncio por silêncio.

(in Antologia Poética; ed. Dom Quixote, 1998)

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Mais alguns versos de Albano Martins

Dizem às vezes: amanhã
é outro dia. Mas, para alguns,
o outro dia foi ontem.

(in Estão agora floridas as magnólias; ed. Afrontamento, 2012)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

De novo, Albano Martins

Também admirável
é o sol: para ele
é sempre dia.

* * *

As estrelas
dormem
de luz acesa.

(in Estão agora floridas as magnólias; ed. Afrontamento, 2012)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Albano Martins, mais uns versos

À noite o dia
só pede
algumas horas de repouso.

(in Estão agora floridas as magnólias; ed. Afrontamento, 2012)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

"Romeu a Julieta", de José Saramago

Eu vou amor, mas deixo cá a vida,
No calor desta cama que abandono,
Areia dispersada que foi duna.
Se a noite se fez dia, e com a luz
O negro afastamento se interpõe,
A escuridão da morte nos reúna.
(in Os Poemas Possíveis; ed. Caminho)

domingo, 12 de agosto de 2012

"Julieta a Romeu", de José Saramago

É tarde, amor, o vento se levanta,
A escura madrugada vem nascendo,
Só a noite foi nossa claridade.
Já não serei quem fui, o que seremos
Contra o mundo há-de ser, que nos rejeita,
Culpados de inventar a liberdade.
(in Os Poemas Possíveis; ed. Caminho)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Um poema mais de Dinarte Vasconcelos

uma aranha teceu a sua teia
numa agave à janela do meu quarto

eu brincava com ela
deitando-lhe na teia cinzas

dos meus cigarros
mas no fundo queria-lhe bem

[assim como acontece
entre nós humanos]

hoje uma tribo de jardineiros
destruiu-lhe a casa

e pensei que não estava ali
para a proteger

[como acontece
entre nós os humanos]

(in a viagem - a casa; ed. autor, 2012)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Versos de Albano Martins

Do casamento da noite
com o dia é que nasceram
as estrelas.

(in Estão agora floridas as magnólias; ed. Afrontamento, 2012)

domingo, 5 de agosto de 2012

Dois poemas de Albano Martins

(O poemapossivel ficou encantado com o último livro do poeta Albano Martins. Nos próximos dias publicar-se-ão alguns poemas dessa obra.)

A manhã
é um pássaro: não tem asas,
mas voa.

* * *

Os galos cantam. A noite
acorda e diz:
- Bom dia!

(in Estão agora floridas as magnólias; ed. Afrontamento, 2012)

sábado, 4 de agosto de 2012

(Outras leituras)


(No outro dia falava com alguém sobre o prazer de percorrer as estantes de uma livraria e trazer um livro novo para casa. Nestes últimos tempos, não tenho acolhido muitos livros novos na minha biblioteca - fruto dos tempos difíceis, poder-se-ia acrescentar. Porém, hoje, aproveitando um vale e uma promoção, trouxe comigo a edição integral das Novelas Exemplares, de Cervantes. É um livro que conheço parcialmente - uma vez já li algumas das ditas novelas noutras traduções - e que, desde que vi esta edição, queria ter. Feliz oportunidade... e o livro até já tem, além daquele que estas linhas escreve, outro leitor interessado!)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Poema de Rui Tinoco

tanto sou leitor como
escritor. gosto de brincar
em frente ao espelho, rasgar
o branco com a caneta
para me descobrir do outro
lado, sentado num cadeirão,
a ler atentamente o texto.
como será esse texto?

(in DiVersos. Poesia e tradução, n.º17; ed. Sempre-em-Pé, 2012)

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

"patinho feio", de Manuel Silva-Terra

enjeitado
o cisne cantou
dentro do ovo
até morrer

não chegou a ter
marca própria
não deu penas
para adorno

não foi trinchado
na noite de natal

(in DiVersos. Poesia e tradução, n.º17; ed. Sempre-em-Pé, 2012)

sábado, 28 de julho de 2012

"Sobre a areia", de Gastão Cruz

Sair do mar deitar
na areia o corpo como se chamasse
o sonho desta noite tão exacto

na reconstituição do que era
oh alucinação da juventude
aproximar os corpos

(in Observação do Verão; ed. Assírio & Alvim, 2011)

domingo, 15 de julho de 2012

Poema de Vasco Gato

Quantas vezes ouvi o meu pai dizer:
não escolhas muito a roupa com que sais.
A bala que contorna a esquina
não se intimida com a beleza.

(in Resumo - a poesia em 2011; ed. Documenta, 2012)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Poema de Rosa Alice Branco

Atrasei-me ou foste tu
que saíste antes da hora?
A chave é um relógio
eternamente certo.

As dúvidas não cabem na fechadura

(in Concerto ao Vivo; ed. & Etc, 2012)

domingo, 8 de julho de 2012

"Partes de um todo", de Luís Filipe Parrado

Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois do jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.

(in Resumo - a poesia em 2011; ed. Documenta, 2012)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

"Cantiga de amor", de José Miguel Silva

Quero agora fazer um cantar de amor
à maneira provençal, para contar
aos marcianos quanto valem os teus
dedos nas refregas do amor, quando
todas as províncias do meu corpo
se rebelam contra fomes ancestrais.

Mas sinto que se prepara já outro
levantamento popular nas partes
baixas do país. Preciso de acudir
depressa à cama com lençóis lavados,
pôr o banho a correr, preparar tudo
para mais esta insurreição da carne.
Antes que chegues a casa e me
censures por não ter tomado ainda
as providências necessárias.

É lamentável - assim se vê a lírica
ultrapassada, uma vez mais,
pelas ardentes circunstâncias
da realidade. Aceitem os leitores
o meu sincero pedido de desculpas.
Ficará o cantar de amor à maneira
provençal para mais sóbria ocasião.

(in Resumo - a poesia em 2011; ed. Documenta, 2012)

(Uma cúpula de camisas)

Pormenor de peça construída com roupa em segunda mão.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

De novo, um poema de Dinarte Vasconcelos

há dias salvei um poema
do fundo do meu realismo gélido

alinhado e resgatado o eco
mato destarte a estupidez
que a idade traz

um poema há dias pois
e a idade igual
antes e amanhã

(in a viagem - a casa; ed. autor, 2012)

(Um filme a todos os títulos recomendado)

Pina, filme realizado por Wim Wenders (2011)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

"Os poetas adoram massagens", de Carlos Mota de Oliveira

Os poetas adoram massagens
ficam de papo para o ar
ficam a ver passar navios
ficam à mercê de Deus
ficam em paz
e o resto da Obra
fica por fazer.
Também eu hoje
me fico por aqui
com a «Massagem»
do Fernando Pessoa.

(in Resumo - a poesia em 2011; ed. Documenta, 2012)

terça-feira, 26 de junho de 2012

"O que diz o rato", de A. M. Pires Cabral

Tenho um destino. Nasci
para roer o silêncio - e vou roê-lo
metodicamente

até que um dia se invertam os papéis
e seja o silêncio a roer-me a mim.

(in Resumo - a poesia em 2011; ed. Documenta, 2012)

"O tanque", de José Saramago

Secou a fonte, ou mais distante rega,
Não tem água o tanque abandonado.
Vida que houve aqui, hoje se nega:
Só a taça de pedra se reflecte
Na memória oscilante do passado.

(in Os Poemas Possíveis; ed. Caminho)

Regressando do silêncio com Dinarte Vasconcelos

a horda lânguida
não se apercebe da melodia
que eclode das linhas do teu colo

dos teus eflúvios procedem
a morfologia dos dias

- entre as minhas mãos
uma gramática suja

que não permite dizer-te

[se pudesse dizer-te
que diria eu]

(in a viagem - a casa; ed. autor, 2012)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Um segundo poema de Dinarte Vasconcelos

lembrei-me que dois grãos de areia
são o mínimo para um poema

dois grãos de areia e o imenso atlântico
e o calado de um barco imerso

uma proa e eu o capitão
dois grãos de areia que caem

o galo que canta na manhã a bordo
e o vento cortado pelo mastro

lembrei-me que duas mãos
são o mínimo para um poema

e lembrei-me que um poema
- dois grãos de areia - é o mínimo

(in a viagem - a casa; ed. autor, 2012)

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Poema de Dinarte Vasconcelos

a melhor poesia é a da tristeza

fica pelo menos assim o intróito
redime-nos de resto a intenção
de sermos tristes a bem da arte

(in a viagem - a casa; ed. autor, 2012)

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Versos retirados de "Epístola sobre o mar", de Jorge Sousa Braga

Ninguém é tão avesso
a margens
como o mar


O coração do mar
é um cemitério
de navios e de luar

(...)

Só os meus pés
conhecem o ritmo
das marés

(...)

Noite de breu:
onde acaba o mar
e começa o céu?

(in O Novíssimo Testamento e outros poemas; ed. Assírio & Alvim, 2012)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

"Epístola sobre o silêncio", de Jorge Sousa Braga

Nestas ervas
só o silêncio
se pode deitar


Ninguém ama
tanto o silêncio -
raízes


Uma folha de erva
verga-se sob o
peso de uma palavra


Silêncio - de súbito
o som de duas carriças
fazendo amor


Vento por dentro
Um pensamento
levanta voo


Procura a tua
verdadeira voz
no silêncio


Atento
ao eco
do silêncio


Porque se agitam
as ervas só as ervas
o podem dizer

(in O Novíssimo Testamento e outros poemas; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quinta-feira, 17 de maio de 2012

"Arte poética", de Manuel Alegre

Nada se sabe
que já não se saiba.

Nada se escreve
que não esteja escrito.

Mas nada se sabe
nada está escrito.

(in Nada está escrito; ed. D. Quixote, 2012)

terça-feira, 15 de maio de 2012

"Cidade", de Manuel Alegre

Nas ruas cheias de gente
vi as pessoas desertas.

(in Nada está escrito; ed. D. Quixote, 2012)

sexta-feira, 11 de maio de 2012

(In memoriam - Bernardo Sassetti)

O poemapossivel preferia não ter que prestar homenagem (cheia de admiração pela sua música) a Bernardo Sassetti (1970-2012).

quinta-feira, 10 de maio de 2012

"A propulsão dos versos", de João Rui de Sousa

A eclosão dos versos acompanha
a propulsão das naves.

Embora ligados ao terrestre
de um chão de traves fundas,
afundadas na pedra e na armadura
de duras construções,
os versos também seguem (quase erectos)
do ponto zero de arranque às aves
do futuro - da matéria do mundo
a um destino cego.

(in Quarteto para as próximas chuvas; ed. Dom Quixote, 2008)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

"Destino", de José Saramago

Risco no chão um traço, à beira água:
Não tarda que a maré o deixe raso.
Tal e qual o poema. É comum sorte
Que areias e poemas tanto valham
Ao vaivém da maré, vem-vem da morte.

(in Os Poemas Possíveis; ed. Caminho)

sábado, 5 de maio de 2012

"A casa", de Manuel Alegre

(Para nós)

A casa tem a nossa vida
a casa está cheia de nós
de coisas arrumadas e desarrumadas
tapetes sapatos livros
retratos discos
quadros
as naturezas mortas estão todas vivas
alimentam-se de nós
e há móveis que foram de outras casas
e de pessoas que fomos nós antes de nós
a casa tem seus ritos e seus ritmos
canetas de tinta permanente
cadernos e papéis sobre a secretária
madeiras e paredes connosco dentro
a mesa com seus talheres e seus copos
e o nosso pão e o nosso vinho
camas por fazer e camas já vestidas
cadeiras onde nos sentamos
e mesmo sem nós ficam sentadas
a casa com seus passos e seu espaço
de silêncios
a casa com sua fala
a casa com sua alma.

(in Nada está escrito; ed. D. Quixote, 2012)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

"Depois do branco", de Manuel Alegre

Quem sabe o que na página se esconde
e se dentro do branco está um muro
e se depois do muro não há onde
e se depois do branco é tudo escuro?

Quem sabe o que pode acontecer
quando ao verso já escrito outro se junta
e tudo está no verso por escrever
e o que se escreve é só uma pergunta?

Quem sabe o que se vê e não se vê
se por dentro do branco apenas cabe
esse nome que nunca ninguém lê
e o verso que se sabe e não se sabe?

(in Nada está escrito; ed. D. Quixote, 2012)

terça-feira, 1 de maio de 2012

"Poema quase metafísico", de Manuel Alegre

Dizem que sou uma organização de água e de carbono
mas ninguém me diz o antes e o depois
nem de onde vem a música e a palavra
ninguém me diz o ritmo e a pergunta
que sem cessar se repete e não encontra
nem água nem carbono nem resposta
apenas o sussuro das marés
e as areias as ondas a cadência
ou o vento que vem do mar e a breve queixa
de quem água e carbono apenas deixa
em cada poema o eco de uma ausência.

(in Nada está escrito; ed. D. Quixote, 2012)

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Poema de Rui Tinoco (inédito)

o escritor foi apanhado totalmente
de surpresa: os seus personagens
sentaram-se num largo, lá
para o quinto capítulo, e todos
eles começaram a ler diferentes
livros. foi um enorme desafio
descrever tudo isso: reabriu
então o caderno, escreveu uma ou duas
frases, mas a obra parecia maior
do que ele...

domingo, 29 de abril de 2012

"Processo", de José Saramago

 A todos os poetas que nos iluminam, iluminando as palavras

As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por casa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.

(in Os Poemas Possíveis; ed. Caminho)

terça-feira, 24 de abril de 2012

(Versos de Gonçalo M. Tavares que se referem a um país)

Ausência de indústria e de fábricas significativas,
eis a higiene de um país como o nosso.
E quando não há chaminés importantes
até o fumo do cigarro conta para efeitos estatísticos.
Não é grande nem é enorme mas é simpático, este país.
Dois lados dão para a terra, dois lados para o mar.
E a coisa assim quase dá certo.

(in Uma Viagem à Índia, versos do Canto III, estrofe 21; ed. Caminho)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

"Mar", de Laureano Silveira

Há um retrato de grupo muito particular
que me é especialmente caro,
algo assombroso
e que eu guardo em frente
a certos livros, numa estante
que confina com a passagem para a varanda
de onde se avista o mar
em minha casa.

Quando o olho vejo o mar
que instantaneamente assalta
a periferia da visão
e perturba levemente
a relação de transparência
que eu desejaria estabelecer
com as personagens.

Quando, pelo contrário, olho o mar
vejo-as a elas
e as figuras ascendem à condição de viventes
na reminiscência
e na memória.

E contudo
eu desconheço-as.
Formam um grupo anónimo
que recortei de um lugar
onde as acompanhava a sua história.
Que não li.

São três homens de meia idade,
duas jovens mulheres,
uma criança.

Não sei porque os amo.
Sei que estão todos mortos.

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

sábado, 14 de abril de 2012

Uns versos mais de Gonçalo M. Tavares

Diga-se que há problemas de poesia mais difíceis
que complicadíssimos problemas de álgebra.
Se a álgebra é uma religião rigorosa,
a poesia será uma religião excessiva, religião entre
a embriaguez e um espaço onde
as mais belas músicas descansam
antes de novamente conquistarem o ar.
Os problemas de poesia colocam questões
aos mais desprotegidos sítios da existência
de um homem.

(in Uma Viagem à Índia, versos do Canto II, estrofe 50; ed. Caminho)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Uma estrofe de "Uma Viagem à Índia", de Gonçalo M. Tavares

(Um livro que gostaria de ter na minha biblioteca, mas que a magreza do tempo presente não permite. Existem, felizmente, as bibliotecas dos outros).

De resto, se uma cara tem duas metades
- uma bela, outra medrosa -,
os inimigos só vêem o medo
e os amantes, o belo.
São no fundo duas cegueiras
particulares,
especializações que surgem (espontâneas)
em certos instantes.

(in Uma Viagem à Índia, Canto I, estrofe 17; ed. Caminho)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

(Ao nível do solo)

Fotografia de Nuno Ramos

"Já que toda a vida será morte", de Reinaldo Arenas

Já que toda a vida será morte,
já que da morte surgirá a vida,
nascer é viver para a morte?
morrer, é confirmar a vida?

Mas quando tudo é morte sendo vida
e toda a vida é um caudal de morte:
morrer, é escolher a vida?
viver, é aceitar a morte?

Quando a morte cinge a nossa vida
que não só foi vida, mas também morte
(vida porque culmina com a morte,

morte porque soubemos o que é a vida),
que nova vida surge dessa morte?
que morte é essa que engendra a vida?

(in Poesia Cubana Contemporânea. Dez Poetas; trad. Jorge Melícias; ed. Antígona, 2009)

terça-feira, 3 de abril de 2012

"Quando lhe disseram", de Reinaldo Arenas

__Quando lhe disseram que estava vigiado
que à noite quando ele saía
alguém com uma chave-mestra entrava na habitação
e remexia nos frascos de aspirina
e nos consabidos, indiferentes, livros;
__quando lhe disseram que dezenas de polícias
em sua honra se afadigavam,
que tinham conseguido subornar os seus familiares mais
__chegados,
que os seus amigos íntimos
ocultavam atrás dos testículos pequenos livretes
onde anotavam os seus silêncios e vírgulas,
_______________________não sentiu medo,
mas sim uma certa sensação de enfado
que instantaneamente soube controlar:
Não vão conseguir, prometeu a si mesmo, que me considere
__importante.

(in Poesia Cubana Contemporânea. Dez Poetas; trad. Jorge Melícias; ed. Antígona, 2009)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

"Apologia do sonho", de João Rui de Sousa

Que do sono só se salva o sonho
quando, sendo penosa a cadência dos dias,
esse sonho se torna licor inebriante
que por dentro nos lava ou rasura o frio
de viajar por entre as catacumbas.

Que esse sonho salva, bem sabemos,
nas tão difíceis contas a prestar
à razão mais corrente e à voz mesquinha:
dizerem que dormir é descansar
para voltar - sem sonho - à mesma vinha
que, no dia-a-dia, se tem de amanhar...

(in Quarteto para as próximas chuvas; ed. Dom Quixote, 2008)

sexta-feira, 30 de março de 2012

Outro poema de Francisco José Viegas

Os amigos vêm uma vez ou outra e sentam-se,
mostram-te como são dóceis ou difíceis, ou
como a morte se impede, por eles, de chegar
até ti. São uma barreira contra a morte,

os amigos, acaricias vagamente o seu rosto
ou a sua memória, as palavras não servem
para isso. Por eles vem a geometria do mundo,
neles se perde depois, nem que seja para sempre.

Vê como eles chegam e trazem vinho, tabaco,
vergonha, cartas antigas, recortes de jornais,
músicas que ouvimos antes. Depois sentam-se

chamam-te para o meio deles, emprestam-te
uma palavra ou outra, caminham com vagar,
riem, trazem coisas que esqueces por toda a casa.

(in O Puro e o Impuro; ed. Quase, 2003)

quinta-feira, 29 de março de 2012

Poema de Francisco José Viegas

Essa velha ciência, a de esperar, escreve-la
em cadernos retirados a cada viagem. Neles
anotaste os movimentos do mundo, o balanço
do mar. São só velhos, os cadernos; ainda

escreves à mão, ainda respiras por ele,
ciência antiga - onde a conservas? Linha
a linha as viagens vão passando por eles como
um mapa: aqui as ilhas, ali pequenos continentes,

provas de que o mundo não acaba à tua porta
quando o jardim desaparece entre os granitos.
Levantas a voz uma vez por outra, mas não é

isso que te interessa. Gostavas apenas que
os cadernos ficassem, gravados de ti e de quem amas,
guardados em gavetas, guardando o mundo.

(in O Puro e o Impuro; ed. Quasi, 2003)

quarta-feira, 28 de março de 2012

"Loa ao Porto", de António Manuel Couto Viana

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
O corpo amuralhado de granito,
Cabelo d'água, à névoa, ao vento, exposto,
Face esculpida em grito.

Braços de ferro, arqueados, desmedidos,
Sobre o fluir dos barcos e do barro.
E um rumor antigo
Na voz das tuas ruas e mercados.

Vestes de escuro e enfeitas-te de luzes
Antes do Sol perder seu oiro pálido.
E das torres com sinos e com cruzes
acenas ao mar largo.

Bulícios de cafés (há mais de mil)
Entornam-te nas veias graça e fogo.
E o lírico torpor dos teus jardins
Suspiros e repouso.

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
Coração não de Pedro, mas de pedra
Com sangue fértil, vinho generoso
A gerar alma e terra.

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

segunda-feira, 26 de março de 2012

"Estou aqui", de Eugénio de Andrade

Estou aqui sentado - ali o mar,
as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

quarta-feira, 21 de março de 2012

(Uma recomendação para o Dia Mundial da Poesia)


(Tal como nos anos anteriores, o poemapossivel recomenda a antologia poética "Resumo - a poesia 2011", organizada por Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas).

"Dia", de Sophia de Mello Breyner Andresen

Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.

(in No Tempo Dividido; ed. Caminho)

segunda-feira, 19 de março de 2012

domingo, 18 de março de 2012

Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen



Não procures verdade no que sabes
Nem destino procures nos teus gestos
Tudo quanto acontece é solitário
Fora de saber fora das leis
Dentro de um ritmo cego inumerável
Onde nunca foi dito nenhum nome
(in No Tempo Dividido; ed. Caminho)

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

(Lampejo)

(Após um silêncio de três ou quatro anos, recomeçou a escrever. Nada de relevo, diga-se, mas só o reaparecimento do impulso para jogar com as palavras o intrigou. Julgava ter-se aposentado o escrevinhador, ou mesmo estar morto, mas afinal não; de alguma forma parecia ter sobrevivido, e a menos que fosse uma aparição fulgurante, de imediato revelou a sua tendência para a catástrofe).

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Poema de Fiama Hasse Pais Brandão

Para a AJ

Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

"Tâmara", de Fiama Hasse Pais Brandão

Pura circunstância trazerem-me
num cesto levíssimo as tâmaras.
Com a boca peso três sílabas.
Com os olhos sou ávida.
Com as mãos repouso e saboreio
os frutos translúcidos.

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"A morte saiu à rua", de José Afonso

(O poemapossivel lembra José Afonso, no dia em que passam 25 anos do seu desaparecimento)



A morte
Saiu à rua
Num dia assim
Naquele
Lugar sem nome
P'ra qualquer fim

Uma
Gota rubra sobre a calçada
Cai

E um rio
De sangue
Dum
Peito aberto
Sai

O vento
Que dá nas canas
Do canavial

E a foice
Duma ceifeira
De Portugal

E o som
Da bigorna
Como
Um clarim do céu

Vão dizendo
em toda a parte
O pintor morreu

Teu sangue,
Pintor, reclama
Outra morte
Igual

Só olho
Por olho e
Dente por dente
Vale

À lei assassina
À morte
Que te matou

Teu corpo
Pertence à terra
Que te abraçou

Aqui
Te afirmamos
Dente por dente
Assim

Que um dia
Rirá melhor
Quem rirá
Por fim

Na curva
Da estrada
Há covas
Feitas no chão

E em todas
Florirão rosas
Duma nação

(in Textos e Canções; Assírio & Alvim, 1988)

domingo, 19 de fevereiro de 2012

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Poema de Fernando Echevarría

Cada dia nos dê o nosso pão
e comê-lo nos abra aquela casa
de inteligência e coração
onde sentar-se é mesa rasa

de ver quantos não estão
sentados nessa casa.
E comer se ilumina, e abre-se portão,
ou qualquer coisa de brasa

entra no movimento e na palavra,
como se cada gesto e cada som
fosse uma leitura que se abra

dentro da história de não haver senão
a de estarmos à mesa da palavra,
transparentes, à luz de se partir o pão.

(in Obra Inacabada; Afrontamento, 2006)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

"A meias", de João Luís Barreto Guimarães

Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo um cigarro e tu fumas
do meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu.
Dá-te gozo esse roubar de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.

(in Poesia Reunida; Quetzal, 2011)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"Desculpas não faltam", de José Miguel Silva

Uma casa junto ao Vouga,
rio de água suficiente,
onde apenas se mergulha
até à cintura, a pequena horta
de Virgílio, o amor robustecido
por nenhuma esperança
e tantos livros para ler
- que desculpa vou agora dar
para não ser feliz?

(in Sérem, 24 de Março; Averno, 2011)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"A caminho do fogão", de José Miguel Silva

Adoro essa paixão absurda que tens por Hitchcock,
o ar despenteado com que chegas a casa e me dizes:
outra vez sopa de nabos; adoro a impaciência com
que me arrancas aos diálogos com o nada, quando
me contas os teus feitos na república do frio; adoro
a tua insónia, os teus escrúpulos morais, a tua esponja
de banho, o teu espírito lavado por agudos desenganos;
outrossim acompanhar-te nas perguntas sublinhadas
pelo tempo, e o teu corpo possuído pela mágica
da música amorosa, quando dança seminu à minha
frente e eu só penso: que bem feito está o mundo.

(in Sérem, 24 de Março; Averno, 2011)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

"Preocupações naturais", de José Miguel Silva

Eu não tinha muita coisa e hoje tenho
a soma dos teus passos quando desces
a correr os nossos treze degraus e
me prometes: até logo. Mas se
nada (ou só o nada) está escrito,
quem mais ama é quem mais tem
a recear. Com isso, passo as horas
num rebate de dramáticos motivos:
engano-me na roda dos temperos,
ponho sal na cafeteira, maionese
no saleiro, vejo o mel mudar de cor
e se me chama o telefone empalideço
como o rosto do relógio da cozinha.
Só sossego quando as gatas me garantem
que chegaste e posso então, aliviado,
unir-me ao coro de miaus que te recebe,
para mais uma noite roubada ao escuro.

(in Sérem, 24 de Março; Averno, 2011)

sábado, 28 de janeiro de 2012

Dois poema de José Alexandre Caldas Ribeiro

Já que viste de longe
Descansa no meu corpo
Dou-te abrigo e alimento
Terás em mim quase um monge

* * *

sem perceber o que disse
perguntei-me se o que teria dito
teria importância

«não tem importância», disse ela

(in A água que nos move; Mariposa Azual, 2011)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

"Como se desenha uma casa", de Manuel António Pina

(Para o poeta, com admiração e gratidão pela sua simpatia)


Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.

(in Como se desenha uma casa; Assírio & Alvim, 2011)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"História de cão", de Mário Cesariny

(Tropeçando na cultura. Ontem à noite, por motivo que não explano, passei pela Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, e reparei que lá dentro circulavam várias pessoas; espreitei e constatei que estava prestes a iniciar-se um concerto e um recital de poesia; como tinha uma hora livre, entrei e sentei-me, o que me valeu este poema do Mário Cesariny).

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

então ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Puestos estan frente a frente"

(No dia em que acabei de ler a biografia de D. Sebastião, da autoria de Maria Augusta Lima Cruz, publico uma cantiga que muito me apraz).



Puestos estan frente a frente
Los dos valerosos campos,
Uno es del Rey Maluco,
Otro de Sebastiano,
El Lusitano.
Moço, animoso y valiente,
Robusto, determinado,
Aunque de poca experiencia
Y no bien aconsejado,
El Lusitano.

Brama que envistan los moros,
Y el exército contrário
Ya se vá llegando cerca,
Aellos (dize) Santiago,
El Lusitano.
Dispara la artelharia
La nuestra mal disparando,
Llueven balas, llueve muerte,
Saetas y mosquetazos.
El Lusitano.

Que por los lados ya todos
Es vanguardia nuestro campo
Y con sangre de los muertos
Está echo un grande lago.
El Lusitano.
Todo lo anda el buen Rey,
Dando muertes muy gallardo,
La espada tinta de sangre,
Lança rota, sin cavallo.
El Lusitano.

Que el suyo passado el pecho,
Ya no puede dar un passo,
A George Dalbiquerque pide
Le dé su rucio rodado.
El Lusitano.
Daselo de buena gana,
Y el Rey cavalga de un salto,
Mirale el Rey como jaze,
De espaldas casi espirando.
El Lusitano.

Mas le dize que se salve,
Pues todo es roto en pedaços,
Y el Rey se vá a los moros,
A los moros Sebastiano,
El Lusitano.
Busca la muerte en dar muertes,
Sebastiano el Lusitano,
Diziendo aora es la hora,
Que un bel morir, tuta la vita honora.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

"Também da chuva", de Fiama Hasse Pais Brandão

Também da chuva
havemos de falar
e onde cai
diremos que uma queda
diferente
nos faz dizer da chuva
que é uma queda muda

Calada
quando só cai
por nós
quando cai


Também no poema
é nossa
só porque cai
muda
como cai no solo
a chuva

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

sábado, 7 de janeiro de 2012

Um poema mais de Amadeu Baptista

Eu era um ser delicado, mas a voz que tinha
estava impregnada de resquícios de profunda grosseria,
quem me ouvisse pensava que eu estava a morrer,
as minhas palavras enchias a jactância do teu peito
e amedrontavam o carinho dos simples que me acompanhavam.

As palavras fluíam da minha boca com o estampido do trovão,
eu praguejava contra tudo e todos,
e as minhas mãos brandiam sobre o ar
uma resoluta fortaleza que não me pertencia.

Eu era um ser delicado, a minha voz tonitruante
dava de mim apenas uma imagem enganadora,
as sílabas com que fulminava quem me ouvia
não eram mais que um último reduto de defesa,
um último pedido de socorro. Porque eu era
um ser delicado.

(in A Arte do Regresso; Campo das Letras, 1999)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

"O nome lírico", de Fiama Hasse Pais Brandão

Esta manhã
hoje
é um nome

Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca

Uma palavra
palavra só
a ergue

Com um nome
amanhece
clareia

Não do sol
mas de quem
a nomeia

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"Falar", de Ferreira Gullar

(Hoje não era suposto publicar neste blogue, mas levou-me o acaso - entenda-se: a necessidade de comprar alguns legumes (!) - a passar por uma livraria e a pegar na obra de um autor que, embora conhecendo, nunca havia explorado. Após as primeiras páginas, o livro de Ferreira Gullar, poeta brasileiro, já me cativara. Tomei nota de um poema, o que abaixo segue, que a seu modo - pelo menos assim o sinto - comunica com o texto de Manuel António Pina anteriormente publicado. Gostaria de poder apresentar mais uns quantos poemas deste autor, mas para já não me será possível).

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

(in Em alguma parte alguma; Ulisseia, 2010)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

"Para que serve, afinal, a poesia", texto de Manuel António Pina

O poemapossivel agradece a Manuel António Pina

Em Poesia, do sul-coreano Lee Chance-dong, uma mulher idosa, ao mesmo tempo que vive os graves problemas em que se envolve o neto adolescente, frequenta aulas de poesia. Deseja, ou antes, precisa imperiosamente de escrever um poema. O filme não ambiciona entender os misteriosos motivos que levam algumas pessoas a precisar de escrever poesia, e muito menos o que seja isso da poesia, algo que, parafraseando o santo, se não nos perguntam sabemos o que é, se nos perguntam já não sabemos.

As tentativas de definição de poesia acabam quase sempre no beco sem saída da etimologia: poesia seria poesis, o fazer (um fazer feito do seu próprio fazer, diz Jean-Luc Nancy). Daí para diante, tudo se torna opaco. E, no entanto, os homens fazem poesia desde o princípio do mundo. E mesmo em tempos, como os nossos, de prosa de negócios, se continua a escrever e ler poesia, e a dizê-la e ouvi-la. Porquê?, para que? - pois alguma razão há-se haver -, se a poesia não serve aparentemente para nada?

Como uma igreja catacúmbica de poucos e persistentes fiéis, no Porto (e decerto noutros lugares também), gente das mais dispersas idades e experiências de vida reúne-se regularmente em bares, galerias de arte, bibliotecas, salões paroquiais, nas próprias juntas de freguesia, para ler e ouvir ler poesia, partilhando quase clandestinamente uma confusa forma de felicidade completamente incompreensível para os pagãos.

Às vezes sou convidado para alguns desses improváveis encontros, de que os jornais não falam e cuja notícia passa de boca em bo¬ca entre amigos, sempre me perguntando o que move aquele peque¬no universo de donas de casa, reformados, estudantes, funcionários, comerciantes (num deles até um ciclista profissional conheci), o que os levará ali a todos, em vez de, como a maioria dos outros, ficarem em casa a ver televisão ou passarem as tardes de fim-de-semana a ver montras nos centros comerciais. Sempre me perguntando e nunca encontrando resposta razoável.

Depois, a poesia tem ainda outra e controversa vertente, a dos que escrevem (e, de novo: porque?, para que?) poesia. A poesia não se compra, a poesia não se vende, ninguém enriquece a escrever ou a editar poesia; a própria palavra «poeta» é hoje, em determinados contextos, uma qualificação quase tão desprestigiante quanto a de «filósofo»...

É certo que muitos poetas parecem convictos de que, escrevendo poesia, «se vão da lei da morte libertando». Só que a camoniana metáfora é apenas isso, metáfora, e ninguém se liberta da lei da morte. Acreditam alguns (humana, demasiadamente humana, delusão) que existirá uma coisa, uma espécie de santidade laica, chamada «posteridade», e labutam incansavelmente por ela, contra o esquecimento inevitável e por um lugar, como dizia um poeta meu amigo hoje já praticamente esquecido, na memória dos «vindouros». Lutar contra a morte é decerto belo se se tem consciência de que é uma batalha perdida e, apesar disso, se persiste; mas quando se acredita que é possível vencer é uma coisa tristíssima, para não dizer (seria cruel de mais) cómica.

Não, a poesia, o que quer que seja a poesia, não protege da morte nem do esquecimento (pois tudo será esquecido, mais ano menos ano, mais século menos século, mais milénio menos milénio; e, visto a suficiente distância, tão-só da Lua ou de Alfa de Centauro, tudo é fútil); a poesia ajuda, mas que sei eu?, a viver e a encontrar nas palavras efémeros instantes de coincidência connosco mesmos e com os nossos medos e desejos. O que, à nossa humana e irrelevante medida, já não será decerto pouco.

Talvez, quem sabe?, a poesia sirva afinal para alguma coisa.

(in Notícias Magazine, edição de 25 de Dezembro de 2011)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Abrindo o ano com um poema de Amadeu Baptista (com os votos de um feliz ano)

Procuro um texto impossível,
um outro caminho para a salvação.

Procuro a palavra que nos una definitivamente, o poema
escrito no barro da alucinação, a palavra que cresce da terra
e atinge a noite com pancadas de luminosa alegria.

Procuro o teu rosto, a chave do segredo inviolável, a súbita
haste de uma flor com o teu nome, lírio, lume, lucerna, a pressão
sobre a página que vem reabilitar
a memória de que somos feitos.

Procuro os teus lábios, a cálida gruta
das tuas mãos, a árvore da vida, lágrima
e luz transgredindo o trajecto entre uma ausência e outra,
murmúrio e estremecimento.

Procuro os teus olhos, procuro a profundidade dos teus olhos,
a euforia que vive no fundo dos teus olhos, os íntimos
sinais de selvagem serenidade
com que recebes quem te olha nos olhos, a ternura,
a violenta ternura dos teus olhos.

Procuro o espaço onde prolongar o sonho para além da manhã,
o rio subterrâneo que exorciza o abismo, a ave
que grita entre as ravinas das trevas, o esplendor
da planície, a chuva
áugure.

Um barco ou uma pedra,
procuro.

(in Arte do Regresso; Campo das Letras, 1999)