quarta-feira, 7 de agosto de 2013

[retira-se alguém um pouco atrás na noite], de Herberto Helder

retira-se alguém um pouco atrás na noite
para fazer uma escola da leveza,
sentar-se sobre si mesmo devorando uma laranja,
pronta,
colhida ao caos, que ela sim ilumina quem a usa,
e é isto: a laranja faz rodar os dedos, torna
leve, pelos dedos,
aquele que a levanta, e tão exacto gosto na língua,
tão transbordante,
dói no fino do frio açúcar,
e a laranja levanta tudo: luz e dedos, e a pessoa
com ferida na boca, o gosto
magoado até à pronúncia das expressões mais simples do idioma,
golpe a golpe,
como em estrangeiro brutal,
ou inexpugnável,
que faz ele? talha trémula, oh Deus! lavrada a pau virgem e folha de
                                                                                          [ouro,
mete-lhe os polegares pelos umbigos, devora-a, celebra, embebeda-
                                                                                             [se,
que escola de laranja terrestre não se pode mais que esta leveza


(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

Sem comentários: