sábado, 22 de novembro de 2014

[No cerne do planeta brilha o nome], de Luís Adriano Carlos

No cerne do planeta brilha o nome
de antiga deusa e a mensagem, luz
para se olhar e ver em seus sinais
visíveis e invisíveis. A ciência
procura conhecê-la, e o problema
é esse mesmo. Quanto à arte, não
a desconhece, porque se a inventou,
antiga imagem, densa em sua luz
perene. Olhemos o planeta, a Obra
em seu puro limiar, as reentrâncias.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

[e todas as noites], de Carlos Lopes Pires

e todas as noites
esvazio o meu coração
para que nele possas entrar e as estrelas

é um tamanho
que nunca posso alcançar

e por isso todas as manhãs
as coisas do mundo voltam a entrar
mas tu não sais

porque tu entras e entras
repetidamente

no meu coração

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

[Resolve-se a equação conforme o vento], de Luís Adriano Carlos

Resolve-se a equação conforme o vento,
na direcção que o conduzir. Resolve-se
apenas tudo deste modo simples,
sem sobressalto algum, por aparência.
Livre de fórmulas, o pesquisador
a si mesmo se faz a descoberta;
institui o problema, raciocina
em ritmos vários, por opção e dor:
atinge a conclusão em mortal centro,
evaporado código, repente.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

[De invenção, de problemas e de afins], de Luís Adriano Carlos

De invenção, de problemas e de afins
vos dirá este livro em quanto seja
de seu alcance humano. Ilimitado
é o nobre tema que ao autor um dia
houve o azar de cair-lhe em pensamento.
Por isso menos do que mais dirá
sobre a matéria. Quem, por esperteza,
sorte, especialidade ou vocação,
chegar onde o autor não foi - chegou.
Nada revele até que a morte o leve.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

"Farewell Happy Fields", II, de Manuel António Pina

II

Estou morto, deitado de lado.
Morte, Vida, Medo, Esperança:
já não estou para aí virado.
Onde vos guardarei agora, lembranças?

Talvez também eu seja uma lembrança diante
da lembrança de uma casa também morta,
e talvez ela me abra finalmente a porta
e as escadas brilhem e o corredor cante.

Dos meus olhos vê-se um jardim
ardendo em rosas espetado
(os teus olhos ardiam assim em mim:
como um palácio iluminado),

um jardim lento (tem muito tempo)
onde eu outra vez entro.
Se me voltasse para trás o que veria?
Ainda os teus olhos, ainda a alegria?

Agora que partiste para sempre
segurando-me inutilmente a cabeça
talvez tudo te pareça
excessivamente evidente

e excessivamente irrisório:
a morte, a vida, os dias sem lugar,
a louça do almoço por lavar,
as meias a escorrer no lavatório.

Mas não nos julgues com severidade,
estava a fazer-se tarde
e já ninguém vinha, o melhor
era irmo-nos deitar.

Agora, se o telefone tocar,
diz que não estou.
(Sem ironia, o meu coração teme a ironia
quase tanto quanto a perfeição;

e sem melancolia:
estávamos a precisar de solidão,
de silêncio, de geometria,
e as nossas lágrimas de uma grande razão).

Agora que não estou
(nem tu sabes quanto)
tudo o que passou
sou eu regressando.

Os meus passos, não
os ouves nas escadas,
subindo as escadas
como os de um ladrão?

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

sábado, 6 de setembro de 2014

"Farewell Happy Fields", I, de Manuel António Pina

I

Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio entre
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado até a tua respiração
na cama ao meu lado,
e também tu estás morta,
duma forma que já não me importa.

Vamos então os dois outra vez
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas, visitamos
talvez algum último amigo
sem sabermos que eu já não estou vivo.

Poderia ter sido de outro modo?
Poderiam ter sido outras duas pessoas
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi por pouco;
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse chegado a casa cansado,
se a louça não estivesse por lavar
e a janela da sala de jantar
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem tu tivesses ido ao supermercado,
e se eu não estivesse cheio de medo.

Agora estou voltado para cima,
para onde cantas ainda há muito tempo.
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu e eu, ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro sozinho
e conversamos comigo
como com um desconhecido.
Que diremos agora um ao outro?

É tarde. Ainda há um momento
me apetecia conversar, agora estou outra vez tão cansado!
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro?

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

[Abre as pernas, dizia-lhe. Morre. E ela morria], de José Rui Teixeira

Abre as pernas, dizia-lhe. Morre. E ela morria
e os filhos mastigavam a luz como frutos secos.
Morria como os lírios redimidos sobre a mesa
da sala no domingo de páscoa, a substância audível
de um ventre em combustão sobre a humidade
da terra, o risco assimétrico do fogo, a queda como
vocação para cair ou a proximidade dos corpos,
ou a devolução inesperada das mãos. Morria.
Não explicava as árvores, porque o milagre
era uma imersão na densidade inteligível do seu útero.

(in O fogo e outros utensílios da luz; ed. Quasi, 2005)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

[As árvores são lugares imensos, como pálios], de José Rui Teixeira

As árvores são lugares imensos, como pálios
dobrados sobre o tempo. Creio que existem
como mutação da realidade, como o movimento
imperceptível de Deus sobre as águas. Existem
expostas à erosão, na curvatura quebrada
da superfície, no sacrário de uma natureza ferida.

Existem como uma porção infinitesimal da alegria
do mundo. Depois morrem sem que ninguém perceba
e a sua sombra perdura à morte, à decomposição lenta
das suas estruturas silenciosas como abismos,
indecifráveis como mistérios antigos, extensíveis
como os braços de Deus em combustão.

(in O fogo e outros utensílios da luz; ed. Quasi, 2005)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"Talho", de Jorge Luis Borges

Mais vil do que um bordel,
o talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.

(in Obra Poética - Vol. 1; ed. Quetzal, 2012; trad. Fernando Pinto do Amaral)

quarta-feira, 30 de julho de 2014

"Parábola da solidão", de Juan Manuel Roca

Quando se desdobrava a solidão,
Quando descia a sua máscara de proa,
Convidava-a para um passeio na praia.
Muitas vezes
Levei a solidão aos bailes
Ou ao grande concílio de solidões
Que se agride nos estádios.
Para não a ver maltratada
Uma vez levei-a ao alfaiate
No meio de fatos vazios.
O costureiro
Com a boca cheia de alfinetes
Como um boneco vudu,
Desdobrou na sua mesa um pano negro.
Tirou as medidas à arisca solidão
E traçou a giz o seu molde.
Tinha a mesma medida da minha sombra.
(in Os Cinco Enterros de Pessoa; trad. Nuno Júdice, ed. Glaciar, 2014)

terça-feira, 29 de julho de 2014

[a última bilha de gás durou dois meses e três dias], de Herberto Helder

a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra
[bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse
[nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a
[habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

"Arte do tempo", de Juan Manuel Roca

O tempo permanece
Apanhado entre os livros.
Por este prodígios de apreensão,
Heraclito continua a banhar-se
No mesmo rio,
Na mesma página.
Tu continuarás para sempre
Nua no meu poema.

(in Os Cinco Enterros de Pessoa; trad. Nuno Júdice, ed. Glaciar, 2014)

segunda-feira, 14 de julho de 2014

[eu não sei], de Carlos Lopes Pires

eu não sei
como é com as outras mães

mas a minha ensinou-me
a ver os pássaros como dantes
as árvores tinham

outras vezes
com as suas mãos
passava sobre as minhas dores
e ficavam pequenas rosas
que ainda hoje não entendo

e cuidou de mim nas minhas feridas
aconchegou-me nos dias frios

e nas noites de pavor e medo
mostrava-me um senhor numa cruz
e dizia-me que assim era também o seu amor

a mãe deu-me tudo

e quando um dia quis pagar-lhe
essa incomensurável dívida

já não estava

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

quinta-feira, 10 de julho de 2014

[lá está o cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo], Herberto Helder

lá está o cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo,
que nem o Diabo ousa
ouvi-lo
quanto mais os anjos do Senhor, os pintainhos!

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

"Numa estação de metro", de Manuel António Pina

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 1 de julho de 2014

"A misericórdia dos mercados", de Luís Filipe Castro Mendes

Nós vivemos da misericórdia dos mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

domingo, 29 de junho de 2014

[queria fechar-se inteiro num poema], de Herberto Helder

queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

(O homem do realejo)



Fica aqui a tradução do poema "O homem do realejo" de Wilhelm Müller (tradução de Maria de Nazaré Fonseca), que Franz Schubert musicou admiravelmente no seu ciclo A Viagem de Inverno (Die Winterreise):

Além, atrás da aldeia

Está um tocador de realejo
E com dedos rígidos
Ele roda o que pode.

Descalço sobre o gelo,
Vacila daqui para ali
e a sua pequena bandeja
está sempre vazia

Ninguém o quer ouvir
Ninguém olha para ele
E os cães rosnam
À volta do pobre velho.

E ele deixa correr
Tudo como Deus quer,
Ele toca, e o seu realejo
Jamais fica silencioso.

Estranho velho,
Devo ir contigo?
Queres tu tocar
As minhas canções no teu realejo?

quarta-feira, 25 de junho de 2014

[tão fortes eram que sobreviveram à língua morta], de Herberto Helder

tão fortes eram que sobreviveram à língua morta,
esses poucos poemas acerca do que hoje me atormenta,
décadas, séculos, milénios,
e eles vibram,
e entre os objectos técnicos no apartamento,
rádio, tv, telemóvel,
relógios de pulso,
esmagam-me por assim dizer com a sua verdade última
sobre a morte do corpo,
dizem apenas: igual ao pó da terra que não respira,
o que é falso, pois eu é que deixarei de respirar
sobre o pó da terra que respira,
entre o poema sumério e este poema de curto fôlego,
mas que talvez respire um dia,
ou dois, ou três dias mais:
quanto às coisas sumérias: as mãos da rapariga,
o cabelo da estreita rapariga,
a luz que estremecia nela,
tudo isso perdura em mim pelos milénios fora,
disso, oh sim, é que eu estou vivo e estremeço ainda

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

terça-feira, 24 de junho de 2014

[que um nó de sangue na garganta], de Herberto Helder

que um nó de sangue na garganta,
um nó de ar no coração,
que a mão fechada sobre uma pouca de água,
e eu não possa dizer nada,
e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra,
sem mais saber de sítio e hora,
e baixo passar a brisa
pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo,
por cada vez mais frios
o dia, a noite, o inferno, o inverno,
sem números para contar os dedos muito abertos
cortados das pontas dos braços,
sem sangue à vista:
só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça,
para sequer um jogo ou uma razão,
oh bela morte num dia seguro em qualquer parte
de gente em volta atenta à espera de nada,
um nó de sangue na garganta,
um nó apenas duro

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

"Os dias seguem-se aos dias", de Luís Filipe Castro Mendes

Cada dia contém uma nova ameaça,
por isso a nossa vida nunca está imóvel.
Mexes os braços durante a noite, quase acordas,
mas deixo-te respirar, sossega agora.
O dia vai trazer a sua carga de penas,
de culpas, de indefinidas faltas
por saldar.
Dorme, por enquanto. Amanhã é um novo dia.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

domingo, 22 de junho de 2014

[pai que foste o princípio da água], de Carlos Lopes Pires

pai que foste o princípio da água
e das viagens

de cujas mãos nasceram
as manhãs de geada com tudo dentro

e as coisas grandes e as rosas

enquanto envelhecia contigo
não sabia que tudo um dia é tarde
e arrefece

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

"Os Cinco Enterros de Pessoa", de Juan Manuel Roca

Poucas vezes sucede
Que ao morrer um poeta
Sejam necessários cinco caixões
Como poucas vezes sucede
Que um poeta seja morada
Para que nele vivam,
Para que trabalhem à sua vontade
E durmam quando quiserem,
Sem pagar renda,
Sem ameaças do senhorio,
Outros 4 poetas.
Ao enterro de Pessoa
Foram com sigilo,
Tal como viveram.
Nunca protestaram
Contra a estreiteza da sua moradia,
Esse peculiar viver dentro da gabardina.
Mas não desejariam mais espaço
Agora, na rigidez das formas?
Não se viu Pessoa em tertúlia
Com os seus 4 fantasmas cardinais.
Não se viu em grupo
A caminho da tabacaria,
Partilhando viuvezes.
Pessoa e os seus compadres.
E essa forma
De não se deixarem ver nos espelhos.

(in Os Cinco Enterros de Pessoa; trad. Nuno Júdice, ed. Glaciar, 2014)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"Heimat", de João Almeida

Enquanto espero a subida das águas
Vou construindo de cabeça
O poema deste dia

Prédios para deitar abaixo
Escalpes de negócios clandestinos
Cães que hesitam a travessia

Os bárbaros chegaram
Governam com ferro e pandemias.

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

"Perda", de Carlos Lopes Pires

Havia uma dor
a crescer no centro do coração.
Não era bem uma dor. Era mais
como uma pedra pesada
e dura
a bater no fundo.
Também não era no centro. Nem
no coração. Era na vida toda,
e era como o trilar dos grilos
nas noites de infância:

vidros que se quebram
à passagem das coisas.

Perdi o nome.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

terça-feira, 17 de junho de 2014

"Esplanada", de Manuel António Pina

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos verbos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

segunda-feira, 16 de junho de 2014

"Que a dor seja", de Carlos Lopes Pires

Que a nossa dor subida seja
em cada coisa procurada,

na parte íntima,
no miolo e na casca,

nas árvores,
nos quartos desarrumados
e nas dispensas,

nas coisas que se dizem
de um para outro lado,
de pais para filhos,

reclinada na almofada
a tua mão no livro,

oh, as coisas que se amam devagar,
os quintais, as laranjas, os balouços,

e que a nossa dor toda seja

cumprida, inteira, ampla,
guardada em cada passo e depois,

porque a nós chega o que é chegado,
e que a nossa dor seja como a água
e seja.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

"Nos teus olhos", de Carlos Lopes Pires

As vides
atam o homem à vida,
o meio da tarde une o sol,

a plena encosta contem a subida,
o todo é parte do nada,

e a casca tem o verão
que tu me deste cantarolando,

os meus pequenos gestos
caindo no lugar
onde o pássaro fez o ninho.

Oh, não me digas que sou triste:

diz antes que durmo
nas papoilas dos teus olhos.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

"Tanques", de Carlos Lopes Pires

Todos os tanques tinham alfaiates.
E todos tinham crianças
com espelhos na água.
E havia um limoeiro lá
dentro. Não havia onde

mas as papoilas.
E tu sabes algo e não dizes tudo.
As estações sucedem-se.
O tordo anda no coração

do mundo.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

"Completas", de Manuel António Pina

(Publico estes versos no poemapossivel no momento em que dá uma partida de futebol, não interessa qual. Jogadores de diferentes continentes correm num retângulo de relva, rodeados de mil pessoas, de mil vozes e gritos. Correm como se nada mais existisse - mas existe. Um eco desse frenesim chega-me através do televisor que habita um canto da casa, aqui ao lado. Este poema é também ele um eco. E isso, por agora, basta-me.)

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 10 de junho de 2014

[Sozinho com as palavras], de José Carlos Soares

Sozinho com as palavras
apascento
a emancipada figura do destino.

A meus pés
estende o sol a sombra
traçada a viril negro
melancólico.

Voltado para a parece
teço
o pequeno milagre
do poema.

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

"Nocturno", de Luís Filipe Castro Mendes

Cada poema tece a sua noite
e nessa noite ele irá ser escrito,
posto em palavras, face
à perdida música.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

"Vinha na semente", de Carlos Lopes Pires

Só a tua mãe te amou,
e deu-te a morte que
vinha na semente,
e deitou-se sobre essa culpa,
e no fundo dessa rosa
colheu espinhos, mágoas,

e atravessou o animal deserto
que sufocava em ti
e nos teus dedos de papoila,

e amou-te tão
no seu cansaço vegetal. E dos dias
noites ela fez e não disse. Envelheceu
a amar-te tanto.
E levou-te a ver um mundo
onde tudo estava certo. E era certo
quando abria os braços
e tu subias ao coração da árvore.

Outras mulheres julgaram amar-te.
Mas só ela viu a cruz
que havia em ti, e só ela sabia dos
sinais, e só ela conhecia os teus
medos. Só ela, no seu silêncio
maior que todas as razões,
pressentia todos os teus segredos.
Com ela
não houve dívidas nem
contas.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed. Textiverso, 2014)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

(Acabado de chegar)

(Depois de uns dias em silêncio, regresso à poesia com um livro gentilmente oferecido pelo poeta Carlos Lopes Pires. Em breve conto partilhar com os seguidores do poemapossivel alguns poemas deste seu recente livro.)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

"O encontro", de Luís Filipe Castro Mendes

Há um encontro que julgas ter perdido,
mas ninguém te esperava e tu não sabias!

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

terça-feira, 6 de maio de 2014

"O Sul", de Jorge Luis Borges

De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
e do banco da sombra ter olhado
essas luzes dispersas
que minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o cheiro do jasmim, da madressilva,
o silêncio do pássaro a dormir,
o arco do saguão, a humidade
- essas coisas talvez sejam o poema.

(in Obra Poética - Vol. 1; ed. Quetzal, 2012; trad. Fernando Pinto do Amaral)

domingo, 4 de maio de 2014

"Ensaio sobre o quotidiano", de Luís Filipe Castro Mendes

O quotidiano não cega:
nós é que estamos distraídos.
Não pensamos, ouvimos falar na televisão
pessoas que pensam que estão a pensar
e assim ganham a sua vida.
Dói-nos a vida, mas dizem-nos que merecemos,
porque pensámos em viver do mesmo modo
que as pessoas que pensam que estão a pensar
e falam na televisão.
Agora as pessoas que pensam que estão a pensar
e ganham a vida na televisão
dizem-nos que perdemos a nossa
e é bem feito
e ainda devia doer mais!

O quotidiano não cega: nós
é que estamos distraídos.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

terça-feira, 29 de abril de 2014

"Balanço e contas", de Luís Filipe Castro Mendes

Para acabar o dia
o poema perfila-se, como um auditor de contas,
e obriga-nos a olhar o (pouco) que hoje fomos.

Nada representamos. Não damos lucro.
Os mercados ignoram a poesia
e os editores toleram-nos por enquanto,
como um luxo secreto ou fantasia.

Mas que fomos nós hoje, na verdade?
Que vimos, que experiências transformámos
em dura consciência, que coisas do dia-a-dia
convertemos no ouro puro da poesia?

(Nenhum deus nos poderá salvar, é certo,
mas também
ninguém nos liga nos mercados...)

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

sábado, 26 de abril de 2014

"Jornal da noite", de Luís Filipe Castro Mendes

Já a cinza em chuva figurada
me veio encher o verso e a nostalgia
de olhar pelas janelas desta casa
e abarcar ainda menos nossa vida.

O tempo fez de chumbo a cinza fria.
Mas a esperança estará nalgum lugar.
As notícias não dão margens de alegria,
mas a vida resiste sem pensar.

Olhemo-nos por dentro na certeza
que teu olhar vai perto da beleza.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

[Ver], de António Ramos Rosa

Ver
e já não ver
ao rés do solo
ao rés da página

O fulgurante espaço
de um instante
e o sulco que inscrevo e desaparece
e logo esqueço na brancura

Mas é preciso acabar a frase
saudando com as antenas de um insecto
o vento que na folha cintila
vindo do nada pontiagudo esparso
com todo o amor do ar vazio

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

terça-feira, 22 de abril de 2014

"A Recoleta", de Jorge Luis Borges

Convencidos da caducidade
por tantas nobres certezas do pó,
demoramo-nos e baixamos a voz
entre as lentas filas de panteões
cuja retórica de mármore e de sombra
promete ou antecipa a desejável
dignidade de ter morrido.
Belos são os sepulcros,
o despido latim e as firmes datas fatais,
a conjunção do mármore e da flor
e as pracetas com frescura de pátios
e os muitos ontens da história
hoje parada e única.
Enganamos essa paz com a morte,
cremos ansiar pelo nosso fim
e ansiamos pelo sonho, a indiferença.
Vibrante nas espadas, na paixão,
adormecida na hera,
somente a vida existe.
O espaço e o tempo são as suas formas,
são instrumentos mágicos da alma,
e quando ela se apagar,
vão consigo apagar-se o espaço, o tempo e a morte,
como ao cessar a luz
caduca o simulacro dos espelhos
que a tarde já foi apagando.
Sombra benigna das árvores,
vento com aves, que nos ramos ondeia,
alma que se dispersa noutras almas,
seria um milagre se deixassem de ser,
milagre incompreensível,
mesmo que a sua imaginária repetição
avilte com horror os nossos dias.
Tudo isto pensei na Recoleta,
lugar das minhas cinzas.

(in Obra Poética - Vol. 1; ed. Quetzal, 2012; trad. Fernando Pinto do Amaral)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

"Je rentre à la maison", de Luís Filipe Castro Mendes

Todos os lugares me são ausência,
por isso nunca posso regressar.

Queria só escutar essa cadência
que as palavras nos tecem ao falar.

E talvez alguém tenha paciência
para ler o que escrevo se voltar.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

"Para quê poetas em tempo de indigência?", de Luís Filipe Castro Mendes

Levantar a gola do casaco,
esconder os punhos da camisa já puídos
e defender, com os dentes cerrados, as palavras:
mas quem aguenta mais este murmúrio vão,
que não colhe mais as flores do mal nem a luz  radiosa na própria miséria?
Resistir, como sempre fizeram os humilhados.
Decorar palavras antigas.
Repeti-las, para que não sejam esquecidas,
aos vindouros.
(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

[Insiro o rosto], de António Ramos Rosa

Insiro o rosto
entre os ramos de um arbusto
e bebo a delicada fábula
dos fulgores solares

Consumi toda a minha fragilidade verde

Dormi como uma folha
de braços abertos
e passo a passo
subi ao cimo do dia

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

sábado, 5 de abril de 2014

"Anunciação", de Luís Filipe Castro Mendes

Não fujo ao poema.
Espero-o com a alegria de quem caminha
sobre brasas e destroços
e dele espero a música, toda a música
que não sei dar nem receber.

Antes de fechar as contas, digo eu,
espero o poema
como um riso atrás da cortina
da vida.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

quinta-feira, 3 de abril de 2014

"Algumas coisas", de Manuel António Pina

A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 1 de abril de 2014

[Olhe, preciso de dinheiro], de Golgona Anghel

Olhe, preciso de dinheiro.
Preciso de muito dinheiro. Quero abrir um negócio.
Algo meu, sabe como é. Estou farto de patrões.
Não posso passar a minha vida atrás de um balcão.
A levar todas as noites com a baba dos perdidos nas trombas.
Já não tenho paciência.
Com esta idade, já viu o que é.
Sujeitar-se a todos os labregos.
Já tentei noutros bancos, sim.
Pedi também aos meus pais, é verdade;
disse-lhes que era para me casar.
Não, não tenho casa, nem automóvel.
Mas, olhe, posso garantir com o meu corpo.
O meu fígado, senhor, tem que ver o meu fígado.
É fígado de motard. Isto parece encolhido e tal,
mas anda a mil.
E adiantado, não pode pagar nada como entrada?
Entrada, não sei.
Só se for o coração.

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

segunda-feira, 31 de março de 2014

"Regresso", de Luís Filipe Castro Mendes

Voltar à poesia, esse caminho estreito
entre a solidão e a vida,
esse jardim onde as flores
crescem para dentro de si próprias,
esse destino sem lugar no mapa.

Voltar à poesia, porque mais nada
cresceu entretanto,
nem palavras nem coisas.

Adivinhávamos promessas no terror dos tempos
e continuámos a andar como se houvesse caminho.
Voltar à poesia, a esta distância sem rumo nem projecto,
voltar à poesia para estar mais longe
do que sou.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

sábado, 29 de março de 2014

[Escolhi a terra para dormir], de António Ramos Rosa

Escolhi a terra para dormir
húmida vermelha dura
nunca formei uma palavra
nunca encontrei a saída

Estou vivo ou estarei morto
ou estarei mais além aberto
entre as constelações salubres
de uma gruta de veias vivas

Já sem andaimes o poema
dilacerado como um nervo
há-se acolher ao rés do solo
um ramo quebrado um formiga
a baba de um caracol

A palavra que nunca foi dita
não será flecha mas ferida feliz
entre os dois pólos do arco
que une o desejo ao silêncio da lua

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

sexta-feira, 28 de março de 2014

"Auto-retrato", de António Barahona

Apenas um homem
com febre de versos:
minha sã imagem
nua até aos ossos.

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

terça-feira, 25 de março de 2014

(Um livro indispensável)

(É sempre com alguma expetativa que aguardo a edição anual, disponibilizada pontualmente no Dia Mundial da Poesia, da coletânea poética Resumo, apoiada por uma cadeia de lojas. Este ano, o volume reúne poemas selecionados por José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas. Uma ausência de vulto, porém, existe - por falta de autorização do autor -: não estão incluídos quaisquer poemas do último, muito aclamado e esgotadíssimo livro de Herberto Hélder...)

sexta-feira, 21 de março de 2014

[O meu olhar é nítido como um girassol], de Alberto Caeiro

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que teria uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a grande novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a inocência,
E toda a inocência é não pensar...

(in Poesia dos Outros Eus; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 18 de março de 2014

"Pensando melhor", de A. M. Pires Cabral

Mesmo em tardes muito quentes de Verão,
há sempre uma ave aventureira
que sobrevoa a terra.

(Pensando melhor, o que de facto há
é terra, apenas terra - que a seu tempo
há-se sobrevoar o voo das aves.)
 
(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

quinta-feira, 6 de março de 2014

"Vento", de A. M. Pires Cabral

I

Toda a noite fez vento sobre os campos.

Rodopiaram folhas mortas nos caminhos,
em busca de refúgio
onde o vento não viesse perturbar
a sua propensão para a inércia.

II

Também eu - folha morta ou em vias disso
que aspira às delícias da imobilidade -
busco algures abrigo contra essa
outra classe de vento que me abrasa,
desinquieta e toca a rebate
sinos sonoros no vazio sem limites
do meu interior.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

terça-feira, 4 de março de 2014

"é, no mínimo, estranho", de Rui Tinoco

é, no mínimo, estranho:
depois de horas e horas
no meio das palavras, desci
ao café para comer qualquer coisa
mas a personagem principal já
estava sentada na mesa ao lado
a comer um gelado
com uma pessoa que me era
inteiramente desconhecida.
a narração não é ofício
isento de surpresas.

(in Era Uma Vez O Branco; ed. volta d'água, 2013)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

"o escritor estava a ter", de Rui Tinoco

o escritor estava a ter
uma conversa bastante
agradável. era verão.
a sombra crescia debaixo
do calor. para tornar
tudo mais prazenteiro, a brisa
veio fazer companhia. a dado
momento, o escritor
concedeu-se uma pausa: estendeu
a mão distraidamente
sobre a chávena morna. a conversa
estava a terminar e nem sequer
se tinha apresentado. que cabeça
a minha: escritor este é o leitor
leitor este é o escritor.

(in Era Uma Vez O Branco; ed. volta d'água, 2013)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

"«ponto final parágrafo»", de Rui Tinoco

«ponto final parágrafo»
quanto a mim, só consegui
responder: «re-ti-cên-ci-a», mas
muito baixinho. agora, que recordo
esta conversa, penso que nem
me ouviste. voltaste a insistir:
«exclamação»
«exclamação»
«exclamação».
não aguentei mais
tive de sair dali, titubeando:
«vírgula». por isso mesmo
acho que a nossa história
ainda não terminou.

(in Era Uma Vez O Branco; ed. volta d'mar, 2013)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

(Um novo livro)

(O poemapossivel não pode deixar de agradecer a amiga oferta deste livro pelo seu autor. Em breve, neste espaço, partilhar-se-ão alguns poemas.)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

"O que me vale", de Manuel António Pina

O que me vale aos fins de semana
é o teu amor provinciano e bom
para ele compro bombons
para ele compro bananas
para o teu amor teu amon
tu tankamon meu amor
para o teu amor tu te flamas
tu te frutti tu te inflamas
oh o teu amor não tem com
plicações viva aragon
morram as repartições

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

[A vastidão do mundo], de José Tolentino Mendonça

A vastidão do mundo
para o peregrino
não é mais do que um quarto vazio

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

"Amor como em casa", de Manuel António Pina

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

(O sol que apetecia...)

Ilustração (alterada) de Cristina Valadas, do livro Pó de Estrelas, de Jorge Sousa Braga
(Este inverno, repete a televisão, é o mais chuvoso dos últimos oitenta anos. Seja. Hoje, para não variar, chove; talvez por isso me tenha encantado de um modo especial este belo sol de Cristina Valadas, que coloquei num céu azul, quando percorria as folhas de um livro que aprecio bastante...)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

"Erosão", de A. M. Pires Cabral

Montes arredondados, de tão velhos,
que já destes pão e hoje dais cardos,

dizei qual erosão mais vos magoa:
se a que vos vem do alto
no uivo dos ventos e nas cordas de chuva

– se a do desuso agrário.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

[Todo o inverno], de José Tolentino Mendonça

Todo o inverno
o solitário bambu
mediu forças com o vento

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

[Tudo é efémero], de José Tolentino Mendonça

Tudo é efémero:
ontem escutava a tua voz
hoje só o vento

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

"A poesia vai", de Manuel António Pina

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? -

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

"Arte de gritar", de A. M. Pires Cabral

Quisera dizer coisas
que ninguém tivesse dito antes de mim.

Deixar uma pegada sobre a areia intacta,
não sobre outras pegadas que já houvesse lá.

Mas cheguei tarde; os que me precederam
no exercício desta dura arte de gritar

amavam a minúcia, a completude,
nunca deixavam uma tarefa a meio.

Disseram tudo. Deixaram só migalhas susceptíveis
de glosas rasteiras, para eu me entreter

como uma criança pobre brinca com destroços
de brinquedos recuperados do lixo.

E eu digo essas migalhas como quem
escreve a terra em laudas rasuradas.

E escrevê-las-ei mesmo quando
não tenha língua já para as dizer.

(Os poetas entendem-me estes mansos
trocadilhos. Os outros, não importa.)

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"Aos meus óculos", de A. M. Pires Cabral

Se um dia vos partirdes, ficarei
mais à mercê do escuro.

Provavelmente não poderei então
nem ler nem escrever nem cortejar
as flores silvestres, as nuvens em castelo,
os pardais disputando uma migalha
— esses frustes amores de fim de tempo.

Deixarei de poder distinguir
um abismo dum simples degrau.

Por isso, vós que sois de vidro quebradiço
como o meu próprio barro,
cuidai-vos em nome de mim.
Paguei-vos, sois meus, deveis-me utilidade.

Faça-se em vós segundo
a minha vontade.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

(Um par de haikus, de José Tolentino Mendonça)

Quando se extinguiu
o vermelho da papoila
o jardim ficou vazio

* * *

No ramo do marmeleiro
descubro nuvens
que não havia visto

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

"Desta maneira falou Ulisses", de Manuel António Pina

Falo por mim, e por ti me calo.
De modo que fica tudo entre nós.
Literatura que faço, me fazes.
(Ó palavras!) Mas eu onde estou ou quem?

É isso falar, caminhar? (Desta maneira falou) - Volto
para casa para a pátria pura página
interior onde a voz dorme o
seu sono que as lavras povoam.

Aí, no fundo da morte, se celebram
as chamadas núpcias literárias, o encontro do
escritor com o seu silêncio. Escrevo para casa.
Conto estas aventuras extraordinárias.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"Nenhuma coisa", de Manuel António Pina

Estou sempre a falar de mim ou não. O meu trabalho
é destruir, aos poucos, tudo o que me lembra.
Reflexão e, ao mesmo tempo, exercício mortal.
Normalmente regresso a casa tarde, doente.

Desta maneira (e doutras -
a carne é triste, hélas!, e eu já li tudo)
ocupo o lugar imóvel do poema. Procuro o sentido
(vivo ou morto!) para o liquidar. Mas onde? E como? E quem?

Tudo o que acaba e começa.
O que está entre as pernas, mudando de lugar.
(Que fazer e para quê?)

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

(Mais dois haikus de José Tolentino Mendonça)

Os que se assemelham a nada
assemelham-se
a Deus

* * *

Nas mãos do oleiro
o universo descobre-se
inacabado

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

"Palavras não", de Manuel António Pina

Palavras não me faltam (quem diria o quê?),
faltas-me tu poesia cheia de truques.
De modo que te amo em prosa, eis o
lugar onde guardarei a vida e a morte.

De que outra maneira poderei
assim te percorrer até à perdição?
Porque te perderei para sempre como
o viajante perde o caminho de casa.

E tendo-te perdido, te perderei para sempre.
Nunca estive tão longe e tão perto de tudo.
Só me faltavas tu para me faltar tudo,
as palavras e o silêncio, sobretudo este.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

(Dois haikus de José Tolentino Mendonça)

Podes interrogar a papoila
mas a papoila
nada responde

* * *

O silêncio
não é o oposto
mas o avesso

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

"Os tempos não", de Manuel António Pina

Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

(Lendo em voz alta, ou um verso de Herberto Helder)

Somente o meu silêncio pensa

(verso do poema "Lugar", I, in Ou o Poema Contínuo; ed. Assírio & Alvim)

[Silêncio], José Tolentino Mendonça

Silêncio:
contemplar a neve
até confundir-se com ela

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

[O silêncio só raramente é vazio], de José Tolentino Mendonça

O silêncio só raramente é vazio
diz alguma coisa
diz o que não é

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)