segunda-feira, 8 de setembro de 2014

"Farewell Happy Fields", II, de Manuel António Pina

II

Estou morto, deitado de lado.
Morte, Vida, Medo, Esperança:
já não estou para aí virado.
Onde vos guardarei agora, lembranças?

Talvez também eu seja uma lembrança diante
da lembrança de uma casa também morta,
e talvez ela me abra finalmente a porta
e as escadas brilhem e o corredor cante.

Dos meus olhos vê-se um jardim
ardendo em rosas espetado
(os teus olhos ardiam assim em mim:
como um palácio iluminado),

um jardim lento (tem muito tempo)
onde eu outra vez entro.
Se me voltasse para trás o que veria?
Ainda os teus olhos, ainda a alegria?

Agora que partiste para sempre
segurando-me inutilmente a cabeça
talvez tudo te pareça
excessivamente evidente

e excessivamente irrisório:
a morte, a vida, os dias sem lugar,
a louça do almoço por lavar,
as meias a escorrer no lavatório.

Mas não nos julgues com severidade,
estava a fazer-se tarde
e já ninguém vinha, o melhor
era irmo-nos deitar.

Agora, se o telefone tocar,
diz que não estou.
(Sem ironia, o meu coração teme a ironia
quase tanto quanto a perfeição;

e sem melancolia:
estávamos a precisar de solidão,
de silêncio, de geometria,
e as nossas lágrimas de uma grande razão).

Agora que não estou
(nem tu sabes quanto)
tudo o que passou
sou eu regressando.

Os meus passos, não
os ouves nas escadas,
subindo as escadas
como os de um ladrão?

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

Sem comentários: